12/11/08

Deus-estado

Texto de N. Cordeiro

A singularidade do mundo moderno é a revolução que houve na filosofia política, especialmente nas figuras de Maquiavel, Hobbes e Rousseau. Com efeito, a tradição grega de Platão e Aristóteles, endossada pelos pensadores cristãos, via o homem como um ser social “por natureza” e, enquanto tal, esses autores buscavam investigar em que consistia o direito natural. Em última análise o fundamento primeiro da Justiça, que aceitavam ser de origem transcendente, cabendo ao filósofo, usando a luz da razão, descobrir sua origem. Aos governantes caberia a administração da Justiça visando o bem-comum pautando-se por respeitar as individualidades. O indivíduo tinha dignidade acima do Estado. Dos cidadãos esperava-se a prática das virtudes, cabendo ao Estado combater os vícios que eventualmente colidissem com os interesses da coletividade. Somente em tempos de guerra é que os interesses do Estado se sobrepunham aos interesses das pessoas.
 
Maquiavel inverteu tudo isso. Colocou a vontade do príncipe acima de qualquer interesse privado e elevou a lógica excepcional dos tempos de guerra como substituta da lógica que presidia os tempos de paz nos séculos anteriores.  Maquiavel é o pai fundador da modernidade, logo seguido por Hobbes, que criou uma nova filosofia política de caráter inteiramente ateu, o primeiro que ganhou dimensão de Estado desde a Antiguidade. Hobbes redefiniu o conceito de direito natural ampliando a inovação maquiavélica. As virtudes deixaram de fundar o direito natural, cuja origem foi transportada para o medo da morte imposto pelo Soberano ao seu talante. O Estado ateu hobbesiano assume essa feição de deus-Estado, senhor da morte. Não mais Justiça se procura, mas a paz imposta pelo terror de Estado, tornada a única virtude. A politeia, os costumes consagrados na alma de uma Nação qualquer, as tais “leis não escritas”, foi deixada de lado, passando a valer exclusivamente o direito positivo. E o vínculo entre as pessoas deixou de ser dar pelas tradições – novamente ignorando-se as virtudes milenarmente procuradas e praticadas – colocando-se em seu lugar o frio contrato.

Silvio D'Amico