26/06/08

a casa

Sobre a Casa, segundo Bachelard

(...)veremos a imaginação construir "paredes" com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção - ou, inversamente, tremer atrás de grossos muros, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos.
A casa, como o fogo, como a água, nos permitirá evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem. Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Reconfortamo-nos ao viver lembranças de proteção. Algo fechado deve guardar as lembranças, conservando-lhes seus valores de imagens. As lembranças do mundo exterior nunca hão de ter a mesma tonalidade das lembranças da casa. Evocando as lembranças da casa adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco poetas.
Assim, abordando as imagens da casa com o cuidado de não romper a solidariedade entre a memória e a imaginação, podemos esperar transmitir toda a elasticidade psicológica de uma imagem que nos comove em graus de profundidade insuspeitáveis. Pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do espaço da casa.
Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós".

Silvio D'Amico